sábado, 24 de abril de 2010

Da Lama ao Kaos

Impossível não responder aos depoimentos deixados por Ricardo, Rodrigo e Fernanda, no meu texto "A Pedagogia Pilatus".

Rodrigo, fique feliz: também tenho que escrever um texto sobre Historiografia (da Grécia ao Iluminismo) para ensino da História em uma universidade estadual. Também estou sem tempo. Divido minha miséria com a tua, que bom! Não temos tempo e ainda assim escrevemos: é pela margem que se devora o rio. (Estou aguardando um longo texto seu! Se vira!)

Ricardo: teu depoimento é belíssimo. Tua escrita é ótima: que prazer tenho no mundo quando encontro pessoas que elaboram o mundo. A pedagogia é mesmo um campo de batalha, um trabalho de sísifo, uma guerra em que sempre se ganha e sempre se perde: um labirinto de Cnossos sem fio de Ariadne. Tua bravura muito, muito me lisonjeia.

Preciso pontuar questões que deixei um pouco no ar: não se trata de exigir alunos ideais e instituições ideais. "Sejamos realistas, desejemos o impossível", contudo, há que se complementar o clichê com um pouco do Hagakure samurai: "aceitar a vida tal qual ela se apresenta". E, tu sabes bem, não se trata de passividade, mas do anseio sincero de querermos mesmo construir uma educação livre e, por isso, começamos pela consciência efetiva sobre esse imenso panóptico histérico que se tornou o mercado da educação no Brasil. É de dentro que se transforma o real; a teimosia é a mãe de todas as virtudes. Assim, conheço a contingência dos alunos. Também trabalhei, dando aulas como professor eventual na escola pública quando fazia minha graduação em História. Sei que a carga de leitura sempre fica aquém do que desejamos: a dos alunos porque eles têm que trabalhar para se manter e, justiça seja feita, a dos professores também, porque temos que ter três ou quatro empregos para podermos comprar nossos livros, pagar nosso aluguel, etc. Tenho consciência das nossas contingências (de alunos e de professores), o que me assusta é, muitas vezes, a alienação do aluno frente ao seu processo pedagógico. O que me assusta não é uma suposta maldade ou má fé do aluno: o que me deixa transtornado é a suposição, por parte do estudante, de que o processo de aprendizado pode ser indolor, pode ser confortável ou confortante, pode ser tranquilamente saboroso. Eu me pergunto: "O que os ensinos fundamental e médio fizeram com esses meninos e meninas, que eles começaram a acreditar que existe conquista sem sofrimento?" Ou ainda: "De onde eles tiraram a idéia que minhas explicações, minhas aulas, podem substituir um processo de aprendizado, de reflexão e de leitura que só eles próprios podem percorrer?"

Essas perguntas me assustam porque revelam certa idiossincrasia muito perversa de nossa educação: o diretivismo do professor em sala de aula, o mito do Showman-teacher dos cursinhos, a lenda do professor palmatória (bate, mas educa) de nosso passado de senzalas à kubitscheks, ainda teimosamente persiste! Ainda se confunde seriedade com sisudez, ainda se confunde ensino com aprendizagem, ainda se acredita no professor-divindade, como um deus Moloch capaz de dar a vida e distribuir a morte. Acredita-se que cabe ao professor a responsabilidade única, o monopólio pelo aprendizado. Desde o ensino fundamental, professores e professoras reclamam da inabilidade dos alunos para com o estudo, mas eu pergunto: "Quando os professores fizeram da sala de aula um lugar de estudo, de reflexão?" Eu sempre escuto aquele papo furado: "Meu professor de cursinho é que era ótimo.... Ele falava e a gente entendia tudo". Pois é: para nossa sociedade, entender e apender é a mesma coisa. Eu sinto estes problemas quando estou em sala de aula na Universidade: meus alunos têm medo de perguntar! Meus alunos têm medo da dúvida! Meus alunos desconfiam de si mesmos e acreditam que aprender é tentar repetir, liturgicamente, o que eu disse em sala. O que me assusta não é a dificuldade do estudo no modo de produção capitalista (essa eu conheço bem), o que me assusta é o que nossa sociedade fez com a educação que matou toda a capacidade criativa o aluno, toda a sua liberdade (e responsabilidade) para com o saber. Tranformou pessoas em corpos dóceis, futuros intelectuais em pussycats, bruxos em broxas, etc.

Não se trata de defender que o aluno deva aprender sozinho e que o profesor não tenha responsabilidade no processo (isso seria ridículo). O que me assusta é que o Brasil ainda não acordou para um fato, para mim, óbvio: a sala de aula é um lugar de poder, e as dificuldades pedagógicas que encontro devem-se ao fato de o aluno desejar o conhecimento pronto, mastigado, porque desejam um ditador. A aula de cursinho se tornou paradigma de ensino no Brasil: veja que temos apostilas até para ensino fundamental 1! Aula de apostila é autoritária. Professor de cursinho é ditador, por que dita. E todos se acostumaram ao conhecimento como leis a serem ditadas e não conceitos a serem refletidos e compreendidos no/pelo grupo em sala de aula.

É curioso: ou o Brasil não se tocou que educação é o mais pleno exercício político de cidadania (muito antes do "vota Brasil") ou se tocou sim, e este é o comportamento político que o Brasil deseja: a docilização de mentes e de corpos.

Meu trabalho em sala de aula nas Universidades vem sendo de dois tipos: 1. Ensinar, propor, refletir sobre os conteúdos programáticos que apresento. 2. Deseducá-los frente às posturas pedagógicas que tiveram que engolir: devem tomar a aula para si, devem buscar a leitura e o conhecimento, devem fazer perguntas e refletir sobre nossas propostas, devem ouvir seus colegas e pensar com eles. Quanto a esta segunda parte é curioso: eles sempre esperam lousa, devoram cadernos, amedrontam-se de suas perguntas, desrespeitam as dúvidas dos colegas (inclusive porque eles mesmos às têm!)

Fernanda: você prova o contrário de tudo que acabei de falar. Você e muitos de meus alunos mostram que o aluno deve seguir o mestre para traí-lo, para superá-lo, e que o professor é um dos protagonistas do processo pedagógico (e não um ator em seu monólogo). E, veja, não se trata de classificar em "aluno bom ou aluno ruim", não penso por essa (i)lógica. Almejo diagnosticar quanto um modelo de educação castrou intelectualmente meus alunos. O que eu quero fazer com meus estudantes seria denominado pelas correntes tradicionais e tecnicistas de "deseducação" ou ainda "criação de maus alunos". Não pretendo postular a insolência, (isso não combina com o Budô). Muito pelo contrário: almejo cultivar a alegria, a irreverência e a liberdade intelectual.

Quando citei a frase de Adorno: "o intelectual não arruma cama" e isso pareceu aristocrático, vale ressaltar que, ao menos da maneira que eu vejo, não se trata de supor um intelectual tão bem servido de renda a ponto de poder contratar serviçais para os afazeres domésticos... Significa que o intelectual sacrifica a casa, a cama, a pia repleta de louça, e corre para os textos, para a escrita. Penso na educação como um mecanismo aristocrático de reflexão, o que não quer dizer que as pessoas devam ser aristocratas, mas devem sim, posicionar-se frente ao mundo de modo nobre, requintado, sutil e – por que não?– irônico.

Se prego essa marcialidade samurai que o Rica e a Fernanda aqui me denunciam (e prego mesmo!) não podemos nos esquecer: os samurais eram aristocratas.

Eis o desafio da educação: ser democrática e aristocrata, ser acessível sem ser popularesca, ser profunda sem alienar-se das contingências sociais e políticas. Baudelaire, em meados do XIX, já comentava sobre o paradoxo da condição aristocrática do poeta frente à velocidade do mundo burguês: se nossas auréolas chafurdarem na lama, todos poderão ser poetas?

Penso que não. Ser poeta no mundo contemporâneo (e estendo a reflexão à criatividade necessária ao estudioso) é ter a consciência de que as auréolas sempre chafurdam na lama... os tolos correm para surrupiá-las e, distraídos, saem enlameados. É o poeta que as atira à lama, só para se rir da tolice prosaica. Tira mais uma do bolso, coelho da cartola, senta-se num café, e, de um Haikai, contempla a Samsara.

Talvez estejamos no caminho certo. Rimos aristocraticamente de nossas contigências e desafiamos a mediocridade política neste blog. Eu precisava dos textos de vocês para reconhecer o caminho. Grande parte da vida a gente fica procurando o caminho. Um dia, recebidos os golpes certeiros, descobrimos que já o havíamos escolhido: só nos restava, vivendo, compreendermos nossas escolhas.

Domo Arigatô Gosaimashita.


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