Vendo a Paixão de Cristo (de Mel Gibson) tive um insight. Percebi que a figura romana de Pontius Pilatus era a chave de leitura ideal para a compreensão da condição de professor no Brasil. O filme mostra o governador romano literalmente "entre a cruz e a espada". Pressionado por uma plebe ávida pelo sacrifício da vítima expiatória, ele vê a irrelevância de todo aquele circo, e pareceu pensar: "Que querem esses hebreus? Todo dia surge um novo exegeta, sempre uma nova leitura de suas escrituras: por que este não outro? Por que supliciar aquele que só tem palavras?" E eis a pressão da cruz. Pressionado estava também nosso colega romano pelo poder do império: um governador deve manter a paz em sua colônia; é preciso conduzi-los para que paguem seus impostos, para que aceitem César (no coração ou somente na boca, desde que aceitem). Havia que se empurrar César güela abaixo dos hebreus, bem rápido, sem barulho: do contrário, a espada de César.
Pilatus foi uma das maiores vítimas de nossa história, senão em intensidade e martírio, ao menos no quesito constrangimento e pressão. Pilatus é um personagem moderno por excelência: carrega, adiantado, contradições típicas do que será o professor na sociedade industrial-capitalista, regada às professias pseudo-literárias da administração de empresas, muito antes de ter sido inventada a máquina a vapor. Hoje ele seria mais um, mas para época, era extemporâneo. Pilatus, hoje, seria mais um professor brasileiro, tendando inutilmente fundir contingências salariais e competência pedagógica. Pilatus e os professores são irremediavelmente prometéicos.
Como professores das redes particular, somos Pilatus: devemos manter a paz em sala de aula para que os alunos aceitem César (o dono, a mantenedora da instituição de ensino e sua logomarca). Ora, o que quer um mantenedor de instituição de ensino? O que todo empresário quer: sossego. Bom empregado é aquele que tendo o contato celular do patrão, em caso de emergência, não disca. (E Pilatus meteu o pobre coitado na cruz, mas não mandou sequer um torpedo gsm para César... são as contradições do business romano). Mas como as instituições de ensino sabem que o pilatus em sala é competente? Ora bolas, como Roma sempre fez: ibope. Bom funcionário não dá ibope, bom pilatus governa sem aparecer, governa como se não governasse, faz a plebe se sentir confortável, traz um aroma de naturalidade. Faz-se invisível para que César apareça.
Assim somos pilatus em sala de aula: se tu soubesses leitor, o frio na espinha que dá quando um aluno não vai com tua cara, não aceita teus métodos de ensino, não toma tuas questões como desafio, mas como ofensa de consumidor lesado, ávido por nota e diploma no final... Rapaz, na hora vem a visão da cruz (da ku klux klan!) ardente em chamas, nas quais se consomem os salários mais límpidos.
E você leitor perguntaria, "Ué? Mas a função do professor não é conduzir e agradar seus alunos com sua sabedoria?" E eu responderia, risonhamente: "Não! Conduzir com sabedoria, agradar para direcionar era função de Pilatus!" A função do professor é propor métodos de reflexão, novas abordagens de compreensão, outros ângulos para o real, abrir a cabeça, fazer pensar, inquirir sobre a raridade de eventos e concepções, trair o senso comum, amplificar sensibilidades, propor caminhos. Isso tudo dói. Traz desconforto, exige estudo, exige que o aluno se prepare para a aula como o professor o faz. Incinera o aconchegante ninho do senso comum que mora abaixo dos pés do aluno, faz com que ele precise criar novos pontos de sustentação e equilíbrio para que possa caminhar em novos terrenos (ou dançar, sob outros ritmos, em terrenos outrora tão conhecidos). Educação sincera gera desconforto, instabilidade, muda a configuração da alma. A última coisa que um governador de colônia desejaria é um upgrade intelectual de seus colonizados.
E por essas e outras, o professor não poderia ser Pilatus. Ele não deve governar, porque governar é transformar o instável em estável e educar é mostrar ao estável que estabilidade não existe (e que o equilíbrio coteja a insanidade). A educação efetiva é multidirecional, é a flecha rumando para o alvo quando o desejo é que a flecha experimente, mas não se fixe, ao alvo. A educação tem método, proposta, mas não pode arrogar para si aonde o aluno vai chegar. Ela "convida", e não "governa". Governo é estupro, educação é dança. Estupro e dança são coisas que se fazem a dois: mas como são diferentes suas práticas!
A sorte de Pilatus é que na Roma antiga não existia telemarketing. Os professores, hoje, somos vistos pelos alunos como Pilatus em microfones de telemarketing: "Boa tarde, gostaria de estar pedindo a leitura de um texto, o Sr. aceita?" "O Sr. pode estar estudando tais textos para a avaliação? Não é muito para o Sr.? O Sr. teria tempo de assistir a aula, participar, contribuir e ainda ler?" "O que o Sr. deseja, uma revisão dos textos para maior comodidade?" "O Sr. quer que eu resuma todos os capítulos dos livros?" "Escevo na lousa o protocolo de atendimento?".
Acho que o professor pode, mesmo, servir. Mas deve servir como o Samurai serve: ele protege com a espada, e, assim, corta, fere, mata uma vida para que outra floresça. Saber é sabor, mas não há saber sem dor. E os alunos querem um mundo fácil, um diploma garantido, um conhecimento digestivo, um upgrade sem demora. Eles chegam à universidade sem leitura, sem tempo para leitura, sem tempo para o estudo, não estão lá para estudar e acreditam, piamente, que o pobre Pilatus aqui pode ensinar algo sem que estudem. Pensam que sou um garçom com microfone de telemarketing (cujo patrão é César da Roma antiga). E se a aula força, se o professor puxa, torce, faz com que rompa seus confortos, ele (o aluno judas) liga para O Serviço Ibope de Atendimento ao Consumidor: qual professor em sua carreira não experimentou da espada de César?
Raros são os que vão a Universidade querendo aprender, mas todos querem se formar. Eu acredito na democracia, mas a educação é uma técnica cuja elegância é aristocrática. Adorno, filósofo alemão, dizia que intelectual não arruma cama. Eu não quero parecer arrogante, mas o aluno que trabalha de segunda à segunda, tendo como único tempo livre o horário de aulas da noite, este aluno não pode fazer faculdade. A que custo se faz a democratização da Universidade? Transformando-a em curso técnico? Estamos democratizando ou vulgarizando a educação? Educação é sexo que se faz com fetiche (prazer e dor): do contrário estamos fadados à indelével brochada intelectual. É possível se praticar educação numa esteira de produção?
Qual a solução? Óbvio: solução de ácido fórmico em solvente estricnina (a 50%). O que podemos fazer? O melhor dentro do possível, ou seja, o que fez Pilatus: fazemos o melhor, mas sem pretensão de grandes vôos; lavamos a mão, metendo na cruz a criatividade, achibatando o gosto pela inelutável transformação a partir de uma educação livre, metemos o sonho na cruz e torcemos para que César não saiba.
...E que o cordeiro de Deus nos perdoe a covardia, amém.
3 comentários:
Vc é um belo dum sacana. Como é que vc tem o desplante de escrever um texto muito bom como esse seu, sabendo que eu ando sem tempo de um diálogo à altura. Agora mesmo estou com meu relatório aberto aqui na frente, mas as únicas frases que me vêm à mente são respostas para seu post. Vc me paga, meu velho...
Caro Fábio:
Endosso a opinião do Cerqueirinha sobre a força e a beleza do teu texto.
Foi realmente um deleite passear por ele, mais ainda pelo fato de que me identifico contigo nos arquétipos marciais.
Sinto-me, inclusive, inspirado a produzir (novamente) alguma coisa (até pelo fato de que, sem querer ser muito pretensioso, e sabendo das diferenças em nossa formação, considero que temos um estilo muito parecido de escrita).
Só lamento (e é um lamento de amigo, pois já existe uma admiração) por um pequeno elemento no fechamento do texto (e você mesmo percebeu isso, ao dizer que poderia parecer arrogante).
Fui um daqueles alunos que tomava garrafas de café durante a noite para fazer os trabalho do curso de Pedagogia. Certa vez, inclusive, narrei o trabalho para minha ex-mulher enquanto viajávamos pela Rodovia dos Bandeirantes até a casa dos pais dela. Ela anotou o que eu dizia. Tirei a nota máxima.
Os cursos de graduação não são feitos de alunos ideais...
Assim como não o são as escolas...
Entendo tua preocupação com a qualificação da Educação no Brasil... Mas a superação disso passa pela realidade que vivemos.
E não acredito que apenas os alunos "em condições ideais" de formação sejam capazes de contribuir para a construção de um Brasil (ou de um mundo) mais iluminado... Prefiro pensar que isto será feito por aqueles que sentem prazer em participar de discussões como essa... E de encontrar, dentro de suas limitações temporais, espaciais e pessoais as condições para a superação deste contexto que você descreve e sobre o qual reflete de forma brilhante... Como um samurai!
Sei que minha fala está carregada de recalques (meus...). Mas, que assim seja também. Não acredito muito (como o Cerqueirinha bem observou certa vez sobre sua "estilística") que consigamos separar tanto assim o que somos, nossas dores e história daquilo que escrevemos.
Sempre me senti (assim como outros e outras colegas) instigado a me preparar para as aulas... Pois, dentre outras virtudes, os professores sabiam dialogar com nossa realidade, e isto aconteceu não numa universidade privada, mas pública, e das boas, onde não cabe esta relação de consumo no ensino.
Mas, talvez também pelas questões que coloquei, eu nem tenha sido convidado para integrar os membros do grupo.
A parte disso, agradeço mais uma vez o presente que nos ofereceu.
Teria muito mais a dizer... Mas... Por hora é isso.
Até porque amanhã acordo às 5h45 e trabalho até as 18h (se não fizer hora extra como normalmente faço), coordenando 17 educadores(as), pensando em como resolver os problemas de alfabetização, em como construir uma cultura de práticas inovadoras (e revolucionárias) nas séries iniciais... Acompanhando projetos da Prefeitura e do Governo Federal que acontecem em nosso Centro Social e, quando posso, tendo insights sobre o (desejado mas talvez distante) Mestrado em uma universidade pública de qualidade, justamente por ser trabalhador.
Minha escudeira está ao meu lado, aguardando para papearmos, namorarmos, ficarmos quietos e falarmos abrobrinha também... Justifico assim a não revisão do texto.
Forte abraço, Ricardo
Bem, talvez eu não seja o exemplo de aluna numa graduação, mas o desejo por aprender sempre me acompanhou, e tenho que admitir que a preguiça muitas vezes deixa minha cama bagunçada, mas ninguém vai arrumá-la por mim.
Mas quem sou eu, que ousa ir contra a filosofia de Adorno, logo eu que amo seus amiguinhos, Panofsky, Gombrich?
Porém o bom intelectual, não apenas bagunça a cama, mas a cabeça de quem a sua volta humildemente espera compreender um pouco de sua genialidade. Ao mesmo tempo que vendo o desespero, estende a mão, e oferece caminhos para compreendê-lo, isso não seria uma arrumação da cama?
Nesse longo, quase interminável, discurso do Fábio, (estou me acostumando ainda com essa retórica sarcástica e sedutora) vejo o medo e a angustia do professor, que enfrenta os olhares de desprezo ou ódio ou os dois, somados a mais outros sentimentos grotescos que passam na cabeça de um aluno.
Mas vejo também o desejo que existe nos que se armam até os dentes para enfrentar o seu mestre que empunha a espada de madeira.
E Fábio... fique tranqüilo, sempre existirão aqueles que colocam a espada em seu pescoço e te fazem defender o seu cargo de responsável pela dor da do saber, do aprender, do questionar, do ser historiador!
Obrigada!
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