Serra se lançou candidato, e dois pontos se destacam em seu discurso: o slogan "O Brasil pode mais" e a apresentação da imagem de que ele não tem interesse em dividir o país - ao contrário, parece, do que viria fazendo o atual governo (divisões entre pobres e ricos, negros e brancos, etc.). Me pergunto se esses dois eixos não se embananam. De todo jeito, mostram a peculiar situação política do candidato tucano.
Quanto ao lema da campanha, reproduzo trecho de artigo de Rafael Dubeux, do Instituto Alvorada:
"A candidatura do PSDB à Presidência foi lançada sob o slogan 'o Brasil pode mais'. À vista disso, é conveniente indagar se o Brasil teria podido mais se tivéssemos tido presidentes tucanos entre 2003 e 2010 [grifo meu]. É verdade que toda projeção desse tipo, uma espécie de futurologia do passado, está altamente sujeita a erros. O passado, afinal, não pode ser reconstruído. Apesar disso, podemos fazer um exercício. Conto com a participação de vocês para complementar.
É preciso recordar, primeiramente, um tema da moda naqueles tempos (2002): a Alca. Estávamos caminhando para assinar o acordo para liberalizar o comércio nas Américas, mas não o fluxo de pessoas. Mais do que isso: o acordo em discussão anulava as políticas de desenvolvimento brasileiro, já que impunha regras em compras governamentais, propriedade intelectual, serviços, investimentos, etc. (...) Sob governo pessedebista, provavelmente seríamos parte da Alca hoje."
E por aí vai o exercício, que trata de política externa e outros temas. Vale a pena lê-lo e prolongá-lo.
Cito de passagem um dos temas que Rafael propõe: o combate à corrupção. Claro, o "mensalão do DEM" fez, em tempos recentes, com que a oposição adotasse o discurso de que defesa da ética na política não é plataforma de campanha. Ou seja: como não será possível usar o "mensalão do PT" contra Dilma, não pensemos pequeno, e vamos discutir projetos para o país. Ou descobrirão que o financiamento ilegal de campanha por certo não se encontra entre aquilo que "nunca antes na história desse país...". Assim, a ética não será tema de campanha das duas candidaturas hoje mais fortes, mas convém perguntar se o Brasil teria "podido mais" nesse campo caso Serra e/ou Alckmin tivesse(m) sido eleito(s).
Trabalhei um tempo no Ministério Público Federal. Pelo que soube nesse período e pude experimentar no dia a dia - e acho que poucos negariam isso - houve diferenças significativas, de FHC a Lula, em termos de tratamento das instituições encarregadas de investigar e levar ao judiciário casos de corrupção. Quanto ao Ministério Público, isso é notório. A escolha do chefe do Ministério Público da União, o procurador-geral da República, é do presidente. Os outros membros da instituição são independentes, mas ele tem atribuições específicas e de grande importância, como atuar no STF. Só o procurador-geral poderia, por exemplo, ter apresentado a denúncia do "mensalão", que envolveu deputados federais, com direito a foro privilegiado.
Pois bem. Como a lei não obriga o presidente a respeitar a eleição interna feita entre os membros do MP para eleger o procurador-geral, seguir o resultado dessa escolha é uma decisão política, que me parece reveladora do apreço pela democracia e por suas instituições. FHC não seguia os resultados dessa eleição. Seu período foi marcado pela gestão de Geraldo Brindeiro como procurador, quer dizer, "engavetador geral" da República (para quem não lembra, essa era sua alcunha, que dispensa maiores desenvolvimentos). Alguém aí se recorda de algum figurão do governo tucano levado ao banco dos réus do STF na era FHC?
Lula nomeou primeiro como procurador-geral Cláudio Fonteles, mais votado entre seus pares. Foi ele que iniciou a investigação do mensalão no MPF. Terminado seu mandato de dois anos, passou a batata quente para Antonio Fernando, também nomeado por Lula respeitando o resultado da eleição interna. Quem quiser pode ver no site da PGR:
"Por decreto de 29 junho de 2005, do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, [Antonio Fernando] foi nomeado Procurador-Geral da República, tomando posse no cargo em 30 de junho de 2005, para um mandato de dois anos. O presidente respeitou a indicação dos membros do Ministério Público: Antonio Fernando venceu a votação realizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República e encabeçou lista tríplice enviada ao Presidente. No dia 21 de junho, foi sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, que aprovou seu nome por maioria absoluta. No dia 28 de junho, a indicação foi aprovada pelo plenário do Senado. Exerceu o cargo de procurador-geral da República até 28 de Junho de 2009."
Antonio Fernando foi o que de fato ofereceu a denúncia do caso, que ainda tá rolando no STF. E, como se vê pela duração do mandato, ele foi nomeado outra vez para a chefia do MPU em 2007. Ou seja, depois da reeleição de Lula, de a imprensa repetir à exaustão que o procurador qualificara de "organização criminosa" o grupo ligado ao presidente. Após isso tudo, mais uma vez, foi nomeado pelo mesmo Lula, seguindo idêntico critério: respeito à eleição entre os membros do MP. O atual procurador-geral, Roberto Gurgel (que me lembra um pouco Jô Soares) passou por idêntico processo. E, note-se, Gurgel, Antonio Fernando e Cláudio Fonteles pertencem no MPU ao mesmo grupo de pensamento, ao mesmo "partido". Nem por isso foram preteridos e nem chamados de horda por investigarem fatos em nome do interesse público.
Os recentes escândalos de Brasília mostram o que já era evidente: caixa dois de campanha, compra de "apoio" parlamentar - práticas inaceitáveis mesmo, claro - não são exclusividade do governo Lula. O caso do "mensalão" segue vivo porque as instituições funcionaram. E não é só o Ministério Público. A Polícia Federal, responsável pelas investigações que o MP leva ao judiciário, também atuou muito mais. E a Controladoria Geral da União? Sob Waldir Pires, defenestrado quando ministro da Defesa pela classe média que tanto sofria nos aeroportos, a instituição deixou de ser mais uma sigla criada para inglês ver. Me chamava a atenção, na época que trabalhei no MPF, como chegavam relatórios da CGU sobre desvios de verbas federais em municípios nordestinos. Com os dados, era possível denunciar os responsáveis, colocá-los em juízo. É bem verdade que muitas vezes o judiciário não corresponde, mas os casos ao menos ganham exposição, podem levar as pessoas a pedir explicações àqueles em quem votaram.
Enfim, quem garante que, munido de dados corretos, o Ministério Público não pudesse ter qualificado qualquer "sistema de governabilidade" já aplicado no Brasil como algo digno de "organizações criminosas"? Não é típico de organização criminosa combinar resultados de privatizações, ainda mais quando estão em jogo cifras colossais? Comprar votos para que o Congresso aprove uma emenda constitucional que permita a reeleição do governante do dia?
Quanto a mim, acho que o Brasil não teria podido mais em termos de combate à corrupção com Serra ou Alckmin.
Mas o engraçado é que esse slogan reflete também a consciência da campanha de Serra de que ele não pode se colocar como anti-Lula. A aceitação do governo é tanta que a oposição nem pode ser... oposição. Resta que não se trata de dizer que a mudança é possível, como Lula em 2002, ou Obama com seu "Yes, we can". Dizer "O Brasil pode mais" é reconhecer que ele já pôde bastante - apenas não tanto quanto possível. É uma frase típica de candidato à sucessão, não de um opositor!
Não vou entrar no mérito de qualificar essa aprovação - embora ainda queira escrever sobre ideias preconceituosas e de senso comum a respeito da aprovação de Lula no Nordeste, por exemplo. Por ora gostaria apenas de apontar como o slogan "O Brasil pode mais" contradiz a crítica a uma suposta divisão do país em grupos antagônicos.
Isso porque a frase de efeito tem um pressuposto óbvio: Serra não é oposição, não defende a mudança, e sim a continuidade, porque o governo Lula tem níveis de aprovação impressionantes. Eis os dados recentes do Datafolha:
Fonte: http://datafolha.folha.uol.com.br/
Ora, se apenas 4% dos brasileiros consideram o governo Lula ruim ou péssimo, que divisão é essa? Se Serra quiser criar algo ainda mais próximo da unanimidade, e que não seja o bom senso segundo Descartes, ele terá que convencer Chico Buarque a engajar-se em sua campanha.
No, they can't!
Nenhum comentário:
Postar um comentário