terça-feira, 23 de março de 2010

Da liberdade que me deixam ter

1. Walter acabou de postar um vídeo que, segundo ele, revelaria “as reais intenções do sindicato dos professores em São Paulo”. E quais seriam estas intenções? Certamente não é a melhoria do ensino, nem o reajuste das perdas salariais, afinal estas são reivindicações que ninguém ousaria contestar: o ensino público é desastroso, e o vencimento dos professores, se não é um dos mais baixos da “escala do trabalho”, como diria Bóris Casoy, tampouco é dos mais dignos. Resta, então, a baderna, imagem das mais comuns para representar o movimento grevista. A APEOSP nada mais é do uma “massa de manobra” do PT – o MST urbano, como diria Reinaldo Azevedo –, cuja única função é a de desestabilizar o governo do PSDB de São Paulo.
2. No dia 08 de março deste ano, após Lula criticar a imprensa – que, segundo o Presidente, teria “complexo de vira lata” ao querer que o Brasil se submetesse à política internacional que Hilary Clinton tentou difundir durante sua visita à América Latina –, Josias de Sousa, no seu blog, retoma Nelson Rodrigues, pai da imagem usada por Lula:

“...Se morre um cachorro atropelado, junta gente; e, se passa um batalhão, nós vamos atrás. O brasileiro tem uma alma de cachorro de batalhão”.

E conclui:

"No momento, a julgar pelas pesquisas, a maioria dos 'cachorros' segue gostosamente o batalhão chefiado pelo general do discurso fácil."

3. Mais uma da Folha. Ontem, Catia Seabra assinou uma matéria (esta somente para assinantes), digamos, curiosa. Circulando nos bastidores das inaugurações do governo – que Josias de Sousa chama de pacmícios –, a jornalista aponta a “disciplina” com que a Ministra Chefe da Casa Civil segue o ensinamento dos “companheiros” mais experientes:
"A devoção de Dilma não se restringe ao presidente Lula. Na semana passada, em São Paulo, a ministra cumpriu, religiosamente, as orientações da ex-prefeita Marta Suplicy (PT).
"Após a entrega de troféus no aniversário do Jockey Club consultou Marta Suplicy: 'Acabou a solenidade? Posso ir embora?', perguntou. 'Não', orientou a ex-prefeita petista, 'Estamos esperando o padre' [Marcelo Rossi]. 'Ah, o padre', disse Dilma."
O que estas três passagens apresentam em comum tem sido, já há algum tempo, uma das estratégias de crítica ao governo: a subserviência da liberdade individual aos ditames totalitários do PT. Uma olhada rápida nos principais tags do Mídia Sem Máscara pode nos dar uma idéia mais clara do que eu estou falando: “doutrinação”, “esquerdismo”, “ideologia” – que, para eles, é uma via de mão única –, “revolução”, “totalitarismo”, “socialismo” e, principalmente, “movimento revolucionário”.
Esta crítica mergulha de cabeça num dos principais fundamentos da ideologia liberal, que estaria sob fogo cerrado com a expansão do estado de partido único que o PT tem se esforçado para implantar no país: o individualismo radical. Fiquemos na superfície da coisa: a chave da ideologia liberal está na idéia de que cada um deve viver da maneira que melhor lhe aprouver, sem qualquer constrição externa, principalmente se esta for estatal, um dos principais inimigos do indivíduo verdadeiramente autônomo. Não é de estranhar que esta histeria cresça na mesma proporção da popularidade do presidente: não nos esqueçamos que, para o liberalismo clássico, a democracia é o primeiro passo para o totalitarismo, uma vez que a pressão das massas tende a anular a vontade autonômica, mas isso, como diria Reinaldo Azevedo quando tem preguiça ou incapacidade de aprofundar um assunto, é para outro post.
O problema, a meu ver, é que esse liberalismo, trazido à tona para pôr em xeque o governo Lula, padece de um entrave conservador de fundo histórico: ele é simplesmente uma reposição da boa e velha topicalidade que Alfredo Bosi, num artigo antológico, aponta como uma das principais características do nosso liberalismo.
Para nossas elites, ser liberal – isto é, um conservador da liberdade adquirida em 1808 e consolidada com a Independência – nada mais era do que a liberdade de produzir, vender e comprar de outros centros que não o metropolitano, era a liberdade de poder se representar politicamente, era a liberdade de se valer de mão de obra escrava sem a ingerência externa, era a liberdade de adquirir novas terras que foram interditas aos pequenos proprietários e aos escravos libertos. A extensão dessas liberdades – a ampliação da cidadania, como coloca Bosi –, contudo, sequer é um problema: a desigualdade faz parte do sistema.
Do mesmo modo, as nossas elites contemporâneas continuam filtrando o que lhes interessa do liberalismo – cuja radicalidade não pode ser desconsiderada –, descartando o resto como uma degenerescência sem maior importância, um efeito colateral que deve ser mantido sob controle.
E a imprensa tem sido, infelizmente, um sintoma deste processo. Para Ali Kamel, só há imprensa livre onde não existe apenas uma fonte de financiamento:

“Quanto mais variadas forem as fontes de recursos que sustentam um jornal, uma revista, um portal de internet ou uma emissora de rádio e televisão, mais livres e independentes serão esses veículos.”

Lembremos também de um artigo inflamado (para assinantes, aqui, para os demais, aqui) de Fernando de Barros e Silva:

“Em 2003, a Presidência anunciava em 499 veículos; em 2009, foram 2.597 os contemplados – um aumento de 961%. Discriminada por tipo de mídia, essa explosão capilarizada da propaganda oficial irrigou primeiro as rádios (270 em 2003, 2.597 em 2008), depois os jornais (de 179 para 1.273) e a seguir o que é catalogado como ‘outras mídias’, entre elas a internet, com 1.046 beneficiadas em 2008.”

No fundo, o que Ali Kamel e Fernando Barros e Silva estão defendendo é a concentração das verbas em alguns pouco lugares, que se arvoram como donos da verdade factual. Isto é, é a liberdade de poucos para poucos, aqueles mesmos que sempre puderam produzir, vender e comprar os bens que lhes interessam, aqueles que podem se dar ao luxo de ter representantes políticos, aqueles que, donos dos meios de produção, continuam explorar a mão de obra.
O engraçado é que a democratização dos recursos, que possibilita a ampliação dos pontos de vistas, é tomada como uma ameaça à liberdade de imprensa, enquanto que a centralização em torno de uma agenda única é o caminho da autonomia individual, é a solução para que os sindicatos deixem de ser meras massas de manobras dos partidos políticos, é a minha transformação de "cachorro" que aprova os discursos de um falastrão qualquer em uma pessoa que pensa por si mesma, é a saída honrosa para que Dilma deixe de ser uma marionete do PT e se torne uma candidata com idéias próprias.
Não nos esqueçamos, ser livre é seguir de olhos fechados o liberalismo radical de sempre das nossas elites tal qual prescrito pela nossa imprensa libertária e democrática.

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