Primeiramente agradeço ter sido convidado ao debate. Debate importante que (como bem sabe o Cerqueira) sempre acarreta indesejáveis efeitos colaterais (sempre a velha dificuldade humana à diferença...)... mas isso são outras reticências...
Bom, penso que o Cerqueira me convida às questões por conhecer certas críticas e preocupações que tenho às políticas das cotas, especificamente no caso do ingresso às universidades.
Sobre os textos enviados ilustro: Não! Não virei reaça como certos colegas políticos! Jamais! Aliás, meses atrás um de nossos príncipes herdeiros, o D. Bertrand, proferiu uma curiosa palestra cujo raciocínio pautava-se na mesma leitura canhestra de Gilbrto Freyre. (Parece que direitonas vêm usando nosso antigo amigo para o mal escancarado, cenas á lá Darth Veider mesmo).
Vejam: ter críticas às questões cotistas não implica em aceitar ou reiterar os sujos discursos de reacionária oposição às cotas. Não acho que a política da cota seja um mal desatado, nem o fim da democracia Ocidental (se é que a democracia conseguiu efetivamente se implementar e não seja, ela mesma, a grande utopia de nossa civilização). Reconheço a importância da questão: traz para o debate neuroses de nossa terra brasilis, mobiliza o sentido que damos ou demos ao nosso suposto Estado de Direito, questiona e levanta poerias dormentes.
Minha crítica se preocupa com questões mais sutís: quando elegemos como critério o termo "raça", estamos repondo o termo, constantemente. Termo este que o XIX nos legou e que nos aprisiona ad nauseam. Não afirmo, contudo, que tal preocupação deslegitime por completo a implantação das cotas, nem acho que esta minha preocupação sirva para maquiar o problema do racismo no Brasil: ao contrário, acho que as estratégias anti-racistas deveriam se preocupar um pouco mais com o uso desse termo para que o tiro não saia pela culatra.
Sei que o multiculturalismo deslocou o termo "raça" da biologia e o trouxe para o campo da cultura. Ok. Mas isso sei eu, o Renato, o Rodrigo, o Ricardo e mais uma dúzia pouca de seres acadêmico-parnasianos. Quando se faz uso do termo "raça" para uma coletividade, em nome do ressarcimento histórico, deixa-se mais que implícito a esta coletividade (por vezes mais iletrada, ou desatenta, do que gostaríamos) que existem "raças" diferentes de seres humanos. A permanência do conceito de raça reitera que existam diferenças "naturais", de "nascimento" entre os seres humanos. Como se existissem tipos de humanos diferentes.
Vejam: é óbvio que os humanos são diferentes (não sou tão rousseauista para pensar que não), mas isso não implica que possamos catalogá-los por "tipos", "naturezas" ou ainda "raças".
Quanto às cotas, não acho mesmo algo "o melhor", mas penso que pode ser uma (e não "a única") medida valiosa para a conquista da isonomia política. Particularmente, penso que se fossem aplicadas cotas sociais e não raciais, atingiríamos os mesmos objetivos sem a nefasta possibilidade de reiterarmos um conceito cientificamente caduco. O cientificismo do século XIX criou o conceito de raça, o nazismo deu o acabamento que o Ocidente sempre quis (mas não era tão descaradamente inescrupuloso para fazê-lo): mais um conceito à serviço da intolerância (e mascarado pela vontade de verdade de certa ciência).
Bem sabemos que, por conta do nosso racismo, a população de baixa renda no Brasil é de pele escura (esse é o método senso-comum de o brasileiro reconhecer a pertinência ou não à categoria de "negro(a)"). Se as cotas fossem sociais (baixa renda) nós estaríamos colocando nas universidades candidatos que foram marginalizados, ou por racismo ou por questões sociais e, de quebra, evitaríamos a reposição dessa balela científica oitocentista.
Por outro lado, mesmo as cotas sociais devem ser utilizadas com cuidados cirúrgicos, ou seja, com data para início e data para o fim. O Brasil está com essa mania de que padeiro, lixeiro e garçon tem que ter curso superior. O Brasil continua achando que faculdade é como título de nobreza ou de viabilidade social (do modo mesmo como os bacharéis do nosso século XIX). Como o brasileiro se recusa a valorizar os serviços de padeiro, lixeiro e garçon, ele impele todos os trabalhadores para as Universidades. Universidade serve para quem deseja ampliar seus estudos, tornar-se pesquisador, seguir carreira acadêmica e, principalmente, para quem gosta de estudar. E, como professor universitário, sei: não vem sendo o objetivo de alguns dos alunos que estão em sala de aula.
Eu sei, eu sei. Estou sendo utópico. No Brasil a universidade se tornou a via honesta de ascenção social (a desonesta é a carreira política....rs). Eu sei que o processo é inevitável, eu sei que não posso fazer nada para mudar essa visão pequeno burguesa e medíocre da universidade brasileira. Mas sou romântico mesmo.
A política de cotas (inclusive as cotas sociais, que considero válidas), deve sempre ter um prazo para terminar para que se evite a reposição dessa mentalidade brasileira sobre o papel da universidade: o uso ad infinitum da cota social reiteraria a concepção de que a função da academia é regular ou catalizar a igualdade social. E não é. A função da universidade é produzir conhecimento (e que o pesquisador possa e deva atuar na sociedade, inclusive para a vibilização da igualdade social, temos como certo.... Mas [eu] não estou certo de que ela deva ser tomada como campo de batalha para a luta social).
E, peço, leiam bem: eu disse "não estou certo" e isso quer dizer: não creio que devemos tomar a universidade somente sobre esse prisma: uma instituição que possibilita a ascenção social. Pensar assim não significa dizer que ela não venha sendo vivenciada desta maneira, não significa dizer que não devemos inclusive, temporariamente, usar esse sentido que a ela vem sendo dado, para buscarmos uma sociedade mais justa.... Isso significa crer que certas medidas devem ser tomadas com cautela.
E o que seria ter cautela? A cautela seria nunca nos esquecermos que as cotas (as "sociais" e não as "raciais" pelo que já expus) são um curativo provisório na sangria destada que se tornou a educação no Brasil. Sei que o governo Lula vem fazendo mais pela educação do que outros fazem/fizeram, como, por exemplo, o PSDB. Mas eu esperava mais do governo.
No que diz respeito aos ensinos básico e médio, poupo explicações (a educação pública está péssima, mas pode melhorar; as redes particulares com suas franquias são péssimas e não querem melhorar porque descobriram que bom negócio é vender logomarca e não processo pedagógico). No que diz respeito ao nível universitário, o MEC vem sendo vergonhoso: como é possível certos cursos obterem nota alta no ENAD, se a biblioteca é praticamente menor do que a que eu tenho em casa? (Contei hoje, meu escritório está com aproximadamente 650 obras na área de humanas).
Se olharmos no movimento geral que vem sendo feito, não veremos um governo preocupado com a qualidade da educação. Se fosse de qualidade, dava até para justificar a política cotista (social) por um tempo. Mas lembrem-se, senhores: quem entra nas públicas é minoria. Temos uma enchurrada de universidades, miraculosamente (ou mafiosamente?) autorizadas pelo MEC entupindo-se de alunos com cotas e pro-unis para fazer um serviçinho medíocre.
O que quer o MEC? Desenvolver a igualdade social? Ilustrar a população? Ou aumentar/maquiar as estatísticas educacionais brasileiras para fazer bonitos índices para inglês ver? Trabalhamos com taxas ou com processos pedagógicos e construção de cidadania? Será que o governo Lula está conseguindo driblar as políticas neoliberais para a educação que nosso passado de graúnas e de tucanos nos legou? Tristes trópicos não?
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Por outro lado, desabafo, sinto-me pouco confortável, sempre que me exponho em tais debates: o fato de eu criticar certas estratégias da esquerda, não me faz discípulo da direita (Aliás, cada dia que passa vejo que não consigo conceituar com exatidão esquerda/direita no Brasil – e em nenhum outro lugar. Só consigo pensá-los a partir dos agenciamentos sociais que os definem, sempre estipulando para si convenções mais de sociabilidade do que efetivamente conceituais ou investigativas e metodológicas – Talvez eu deva fazer como o Renato, ler Bourdieu para entender melhor esse movimento).
Não é inadmissível pensarmos em cotas. Para mim, Fábio Casemiro, é inadmissível defender qualquer ponto de vista sem considerar suas deficiências, seus limites, seus efeitos colaterais. Não abomino os argumentos de Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi, etc... porque à priori são de direita: eu abomino seus argumentos porque são medíocres e ridiculamente persecutórios.
O Demétrio Magnoli me parece interessante sim. Preciso ler o livro dele a sério Uma Gota de Sangue (já tá aqui em casa). Tenho certo que alguns argumentos não me convencerão, o que não me impede de concordar com outros, como: "foi o racismo que inventou a idéia de raça e não a raça que criou o racismo" [citação de cabeça, confiram....].
Por outro lado, gosto da idéia da democracia como jogo. Gosto de me sentar à mesa com quem não concordo. Eu aprendo. É com o aprendizado que tenho casamento, com ele me fiz monogâmico. Gosto de pensar, e em termos de abetura intelectual sou uma prostituta (e da intolerância, recuso as cartas de amor).
Confesso, adorei a experiência que tínhamos no Jornal PortAberta. Às vezes, esquizofrênico, acho que aquele foi o menor e melhor jornal/revista do país. Reunia uma fauna de opiniões que se debatiam nas páginas. Talvez aquilo tenha sido o mais próximo que chegamos do anarquismo. E meu coração é anárquico. (Fico feliz em mobilizarmos publicamente, mais uma vez, nossas contradições: Caos à Política!)
Queria que a idéia de "raça" virasse fóssil para arqueólogo botar no museu. Sonho com isso. A política de cotas é uma resposta possível. Penso muito sobre ela. Mas, poeta, não consigo não ver que a imenda pode sair pior que o soneto.
Acho que cada dia venho me tornando mais transculturalista que multiculturalista. Mas preciso descobrir exatamente o que isso significa (e quais os efeitos colaterais disso).
Sou tão radical à liberdade
que craseio na ênfase.
Continuo de esquerda,
e com saudades de nossas conversas.
Abraços a todos!
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