segunda-feira, 29 de março de 2010

Metendo o bedelho onde não fui chamado

Como esse é espaço público de discussões, não me sinto mal em meter o bedelho na conversa entre Walter e Felipe. Muito pelo contrário, fico bastante feliz que o debate esteja dando o que falar, a despeito do tempo preciso que me tem consumido. Mas vamos ao que interessa:

1. Na pergunta de Walter, assim como na resposta de Felipe, há, quando não uma defesa, ao menos uma aceitação da presença de um policial disfarçado entre os manifestantes. A mim essa revelação me causou, antes de tudo, uma estranheza. Como Walter bem elencou, um policial disfarçado tem algumas atribuições "conduzir investigações, levantar informações e antecipar-se a conflitos e ataques" – todas elas visando desbaratar alguma organização criminosa, não? Aí vem a pergunta: uma manifestação de professores é uma organização criminosa? A resposta positiva a essa pergunta, como parece ser a de Walter e a de Reinaldo Azevedo, dão bem a idéia do que significa a criminalização dos movimentos populares. O tratamento que as chamadas "forças da ordem" lhes conferem passa por um a priori – são organizações marginais, daí a necessidade de policiais infiltrados –, que, me parece claro como água, vai se refletir na maneira como os manifestantes vão ser tratados pelo policiais na linha de frente. Como bem exemplificou o capitão Nascimento para gozo de uma grande parcela da sociedade: marginal se trata é na base da pancada.

Ao que parece, ter um agente inflitrado na manifestação não é uma informação tão natural assim. A assessoria PM comunicou que o policial que socorreu a soldado ferida estava, quem diria, passando lá por mero acaso do destino. Há mais coisa aí ou eu que sou neurótico? (Link da matéria da Terra Magazine e do Blog Brasília, eu vi)

2. Na segunda pergunta o negócio fica, digamos, engraçado. Segundo Walter, infiltrar agentes nos movimentos de contestação é típico dos regimes de exceção. Nesse sentido, Walter, a PM de São Paulo, sob o comando de José Serra, está agindo como "os governos de Cuba, China, Coréia do Norte, Venezuela e ex-União Soviética para [identificar] opositores políticos"? Isso não deveria ser um motivo de crítica ao invés de uma aceitação natural?

Assim como Felipe, não sei como Walter passou do apoio às manifestações populares à adesão àqueles regimes de exceção. Muito pelo contrário, a defesa dessas manifestações significa, pelo menos no meu entender, o reconhecimento de toda e qualquer oposição a uma ditadura, não interessa com que mão ela escreva. E aqui vai uma provocação: a maneira brutal com a qual a PM comandada por Serra tem tratado as passeatas dos professores não difere em nada de como o regime castrista trata os dissidentes que vão às ruas protestar contra a ditadura cubana. Repressão violenta é repressão violenta, aqui ou lá.

E quando Walter pergunta, à la Reinado Azevedo, com caixa alta e tudo, "Por que um BANDIDO ARRUACEIRO estava na manifestação, e tão bem fantasiado de grevista?", suponho que ele esteja falando do manifestante que agrediu a soldado no rosto. Eu rebato a pergunta: como é que ele sabe que foi o manifestante quem agrediu a policial primeiro? E se ela o agrediu, e ele apenas se defendeu? Ao que eu saiba, ninguém deste blog estava lá e presenciou o ato. Não há como atribuir culpa por cada ato individual de violência. Pensei em escrever que, uma vez deflagrado o conflito não interessa, ao menos não para este argumento, quem o tenha começado , caberia a cada uma das partes, policiais e manifestantes, se defender como puder, mas não sei se isso está correto. Não podemos esquecer de que é a PM que detém o monopólio dos instrumentos de coerção – as chamadas armas de efeito moral –, por isso há uma grande disparidades entre as possibilidades de violência, que não pode ser simplesmente ignorada, sob o riscos de cairmos no casuísmo de um Reinaldo Azevedo: "MANIFESTANTES DE DILMA FEREM POLICIAIS EM SÃO PAULO". Isso sem contar que nossa polícia não conhecida pela sua gentileza britânica.

3. Não há como tomar parte da coisa, pois presenciei a cena que Felipe descreve...

4. É verdade, como aparenta a pergunta de Walter e a resposta de Felipe, que nenhum dos dois toma uma posição maniqueísta: quem participa dos movimentos sociais são "pessoas do bem" e as que discordam são "pessoas do mal", e vice-versa. Certo, enquanto as coisas ficarem num plano plano argumentativo, não tem mesmo como deificar ou satanizar ninguém. Mas quando a coisa vai pras ruas e descamba em violência, vou tomar um partido um tanto maniqueísta, sim: até que se prove o contrário – e quando isso for feito, posto aqui minhas desculpas –, a responsabilidade da violência durante as passeatas é da PM. Me explico: historicamente, é assim que qualquer mobilização popular é tratada, seja ela violenta ou não. Foi assim com os escravos fugidos, com a Conjuração Baiana, com a Revolta dos Malês só pra ficarmos com alguns que me são mais caros. Mas caso reste alguma dúvida, basta uma leitura de Os sertões para termos pintados em cores bem vivas como as forças republicanas trataram os habitantes de um vilarejo perdido no meio do nada. Ou será que Euclides da Cunha era petista?

5. Vou fugir um pouco da discussão lingüística que este tópico tomou – falsidade ou veracidade dos pressupostos, o que está dito ou silenciado nas entrelinhas – e tentar seguir noutro rumo. Primeiro, uma manifestação não pode ser resumida aos atos individuais de alguns manifestantes, do mesmo modo que a ignorância de alguns poucos marginais não torna a violência nos estádios culpa dos torcedores. Mas há ainda um outro ponto: um ato de agressão só é violento quando ele é manifestado de maneira física, quando alguém atira uma pedra, um ovo, quando um grupo invade uma reitoria ou uma propriedade? E um governador que se recusa a reconhecer a legitimidade de uma manifestação e as falhas de um sistema falido? Está agindo de maneira agressiva? E quando a especulação fundiária e a grilagem expulsam pequenos trabalhadores de suas terras? Isso é um ato de violência? Muitas vezes, o que julgamos excesso de agressividade nada mais é do que uma humilhação há muito recalcada. A questão, aqui, é do que é causa e o que é conseqüência.

6. De volta à manifestação, não sei quem atirou a primeira pedra. Walter e Felipe tampouco sabem. Contudo, ao contrário do que pensa Walter, assumo, porém, a hipótese, respaldada por anos de excessos das nossas "forças da ordem", de que foi a PM. Como diria Reinaldo Azevedo, simples assim.

Mas, neste tópico, são outros dois os pontos que mais me incomodam: primeiro, o de ignorar que o comportamento das massas não é racional. Movida pelas paixões, não precisa de muito para que as coisas degringolem, e qualquer agitador sabe disto, esteja ele a mando de quem estiver. (Recomendo a leitura de Massa e poder, de Elias Canetti, um pensador búlgaro, cujo incômodo intelectual estava em tentar entender porque o povo alemão aderiu a um regime como o nazismo.)

Segundo, o eterno retorno de Martin Luther King e Ganghi como exemplo de como se deve levar à frente um protesto. Não concordo com Felipe, não considero esse "o caminho [...] mais inteligente e correto". Antes de tudo, não vejo a Índia como um exemplo pra pensarmos quais devem ser os modelos de protesto. Numa sociedade tão hierarquizada quanto a indiana, no qual todas as pessoas têm seus papéis e lugares na sociedade bastante bem demarcados, o conflito nunca está no horizonte de possibilidade de reivindicação. Quanto a Luther King, tomar seu idealismo na defesa da igualdade racial como o ponto alto da defesa da igualdade racial é ignorar o papel fundamental de outros movimentos, os Panteras Negras, por exemplo, mais radicais e mais capazes de fazer andar as engrenagens de uma sociedade tão conservadora como a americana.

Não podemos nos esquecer de que ambos forma assassinados: onde é que está mesmo a paz deste processo? Por que ela tem que ser unilateral? Por que só os mártires conseguem um lugar no imaginário canônico de como os movimentos sociais devem ser? A que interesses esse imaginário atende? O das classes subalternas é que não é. Disto tenho certeza.

7. Aqui, novamente, a leitura que Walter faz da foto incorre na cegueira segundo a qual o contexto de selvageria captado pela foto nada mais é do que um instantâneo do "clima de selvageria e [de] bandidagem promovido pelos sindicalistas, [do] ato agressivo da paulada no rosto [...] da policial ferida pelos manifestantes". Não vou voltar ao assunto já repetido até demais: enquanto não tivermos certeza de quem começou a violência, enquanto estivermos no plano da especulação, cada um com seus preconceitos: violenta, segundo dados das comunidades internacionais, é nossa PM. Mas há algo que Walter deixou passar. É verdade, a foto revela o contexto em que foi tirada: o da barbárie. Mas onde estão os vândalos? Não podemos vê-los, porque todo o pano de fundo é encoberto pela fumaça das armas de efeito moral da polícia, que, até onde eu saiba, é a única que possui o gás lacrimogêneo que serve de moldura para um primeiro plano que não perdeu sua força. A foto esbanja, sim, "covardia e violência". Covardia e violência daqueles que monopolizaram a violência por tanto tempo e agora querem sair de vítimas da história.

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Um comentário:

Felipe Leal disse...

Cerqueira, só uma coisa quanto ao ponto 1: eu me referia ao uso de serviços de inteligência para investigações como aquelas que a PF faz quanto à corrupção, e não à presença de policiais infiltrados em manifestações.

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