Acho que devo principiar este post com um pedido de desculpas por qualquer mal entendido que possa ter causado. Quando destaquei um trecho do discurso do senador Demóstenes Torres sobre a miscigenação – “Nós temos uma história tão bonita de miscigenação… [Fala-se que] as negras foram estupradas no Brasil. [Fala-se que] a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. [Fala-se que] foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual” – não estava insinuando nem que a leitura de Fábio era tão canhestra quanto aquela, nem que algum dos dois compartilha dessa visão distorcida da história.
Me referia, isso sim, a um velho incômodo que se esconde sob as palavras do senador – e que explica sua interpretação da obra de Freyre: a incapacidade que a sociedade brasileira tem de assumir a idéia de conflito como uma categoria hermenêutica não só válida como também, o que é mais importante, positiva. Assim, quando destaquei o trecho e chamei a atenção de Fábio e Ricardo, estava saudosamente pensando numa daquelas tardes que passamos na Unicamp, na qual discutíamos, pra variar, as cotas para negros na Universidade. Ricardo, então, sob o silêncio – não sei se conivente ou reflexivo – de Fábio, apontou que uma das suas restrições àquela política dizia respeito ao seu medo de que ela criasse um conflito racial no país. E foi exatamente essa frase – não literal, obviamente, até mesmo porque quem conhece Ricardo sabe que ele não é tão prosaico – que me veio à mente quando li a matéria da Folha.
O conflito racial no país já existe: latentemente. Roberto Schwarz escreveu que para descobrir as falácias do liberalismo na Europa foi necessária uma mente tão arguta como a de Marx; no Brasil, bastava ser escravo. Do mesmo modo, viver a falácia da democracia racial nessa república paralela que é a das classes média e alta em que vivemos é uma coisa; querer torná-la uma realidade nacional para que continuemos gozando dos seus privilégios – e sem querer arcar com os seus custos sociais – é de uma violência que me parece sem tamanho. Batendo na mesma tecla: o conflito racial já existe no país – e exemplos não faltam –, o problema é que, com a política de cotas, ele ousou cruzar a fronteira que mantinha saneada a nossa republiqueta, ousou se insinuar em espaços que não lhe pertenciam, como as universidades. Isso é o que incomoda a tanta gente.
Se a política de cotas vai reduzir as desigualdades no país, eu realmente não sei. Mas ela, a meu ver, já tem um ponto bastante positivo: democratizou um desconforto que era muito convenientemente seletivo ao instaurar um conflito onde só havia a modorra de um assunto interdito e dado por encerrado: o da raça. Com todo o respeito, Fábio, defender as cotas sociais é uma tarefa fácil. Já é um lugar comum de qualquer discurso, mesmo entre as posições mais conservadoras, que é preciso diminuir as desigualdades sociais do país. Mais difícil tem sido meter a mão na lata de lixo da nossa história e revirar a sua imundice, principalmente no que se refere à escravidão e à ditadura, duas mazelas – cujos términos, não por acaso, são representados, ambos, como processos de transição conciliatórios que mascaram o quanto de violência repressora existiu para sua manutenção, assim como a resistência de escravos e de cidadãos – que permanecem dando as mesmas cartas marcadas da nossa sociabilidade hipócrita.
Na minha modesta e pouco abalizada opinião, as raças existem, sim. Elas existem num nível celular, que se manifesta fenotipicamente, determinando nossas diferenças. O problema é que teimamos em querer suprimir a diferença através da abstração cada vez menos operacionalizável de “ser humano”. É a reposição da falácia do amor sem fronteiras de Shrek e Fiona: aparentemente, há uma superação das diferenças, afinal a princesa do conto de fadas se apaixona pelo horrendo ogro; mas, para que esse amor possa se concretizar, é preciso que Um se transforme no Outro. Não importa se é o feio que vira bonito ou o bonito que vira feio: importa, isso sim, que as diferenças não podem conviver, por isso sua supressão. Do mesmo modo, a utilização da categoria “ser humano” tende, a meu ver, menos do que igualar os homens, a suprimir as diferenças – o que não é a mesma coisa, principalmente porque é com as diferenças que temos que conviver cotidianamente, não com a sua utópica abstração. E todos sabemos, por experiência própria, o quanto isso é difícil.
Última nota, que este post já vai maior do que eu pensava: não só é possível diferenciar a esquerda da direita no Brasil, como essa é uma tarefa que se faz cada vez mais urgente. E essa diferença, nas palavras de um brilhante crítico materialista,
"is, first and foremost, a product of temporality: of the weight and memories of the past, the open-ended conflicts of the present, the projects and hopes of the future."
(Franco Moretti, "The moment of truth",
in New Left Review. London, n. 159, sep.-oct., 1986, p. 47)
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