quinta-feira, 18 de março de 2010

Dos conflitos e das cotas


Acho que devo principiar este post com um pedido de desculpas por qualquer mal entendido que possa ter causado. Quando destaquei um trecho do discurso do senador Demóstenes Torres sobre a miscigenação – “Nós temos uma história tão bonita de miscigenação… [Fala-se que] as negras foram estupradas no Brasil. [Fala-se que] a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. [Fala-se que] foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual” – não estava insinuando nem que a leitura de Fábio era tão canhestra quanto aquela, nem que algum dos dois compartilha dessa visão distorcida da história.

Me referia, isso sim, a um velho incômodo que se esconde sob as palavras do senador – e que explica sua interpretação da obra de Freyre: a incapacidade que a sociedade brasileira tem de assumir a idéia de conflito como uma categoria hermenêutica não só válida como também, o que é mais importante, positiva. Assim, quando destaquei o trecho e chamei a atenção de Fábio e Ricardo, estava saudosamente pensando numa daquelas tardes que passamos na Unicamp, na qual discutíamos, pra variar, as cotas para negros na Universidade. Ricardo, então, sob o silêncio – não sei se conivente ou reflexivo – de Fábio, apontou que uma das suas restrições àquela política dizia respeito ao seu medo de que ela criasse um conflito racial no país. E foi exatamente essa frase – não literal, obviamente, até mesmo porque quem conhece Ricardo sabe que ele não é tão prosaico – que me veio à mente quando li a matéria da Folha.

O conflito racial no país já existe: latentemente. Roberto Schwarz escreveu que para descobrir as falácias do liberalismo na Europa foi necessária uma mente tão arguta como a de Marx; no Brasil, bastava ser escravo. Do mesmo modo, viver a falácia da democracia racial nessa república paralela que é a das classes média e alta em que vivemos é uma coisa; querer torná-la uma realidade nacional para que continuemos gozando dos seus privilégios – e sem querer arcar com os seus custos sociais – é de uma violência que me parece sem tamanho. Batendo na mesma tecla: o conflito racial já existe no país – e exemplos não faltam –, o problema é que, com a política de cotas, ele ousou cruzar a fronteira que mantinha saneada a nossa republiqueta, ousou se insinuar em espaços que não lhe pertenciam, como as universidades. Isso é o que incomoda a tanta gente.

Se a política de cotas vai reduzir as desigualdades no país, eu realmente não sei. Mas ela, a meu ver, já tem um ponto bastante positivo: democratizou um desconforto que era muito convenientemente seletivo ao instaurar um conflito onde só havia a modorra de um assunto interdito e dado por encerrado: o da raça. Com todo o respeito, Fábio, defender as cotas sociais é uma tarefa fácil. Já é um lugar comum de qualquer discurso, mesmo entre as posições mais conservadoras, que é preciso diminuir as desigualdades sociais do país. Mais difícil tem sido meter a mão na lata de lixo da nossa história e revirar a sua imundice, principalmente no que se refere à escravidão e à ditadura, duas mazelas – cujos términos, não por acaso, são representados, ambos, como processos de transição conciliatórios que mascaram o quanto de violência repressora existiu para sua manutenção, assim como a resistência de escravos e de cidadãos – que permanecem dando as mesmas cartas marcadas da nossa sociabilidade hipócrita.

Na minha modesta e pouco abalizada opinião, as raças existem, sim. Elas existem num nível celular, que se manifesta fenotipicamente, determinando nossas diferenças. O problema é que teimamos em querer suprimir a diferença através da abstração cada vez menos operacionalizável de “ser humano”. É a reposição da falácia do amor sem fronteiras de Shrek e Fiona: aparentemente, há uma superação das diferenças, afinal a princesa do conto de fadas se apaixona pelo horrendo ogro; mas, para que esse amor possa se concretizar, é preciso que Um se transforme no Outro. Não importa se é o feio que vira bonito ou o bonito que vira feio: importa, isso sim, que as diferenças não podem conviver, por isso sua supressão. Do mesmo modo, a utilização da categoria “ser humano” tende, a meu ver, menos do que igualar os homens, a suprimir as diferenças – o que não é a mesma coisa, principalmente porque é com as diferenças que temos que conviver cotidianamente, não com a sua utópica abstração. E todos sabemos, por experiência própria, o quanto isso é difícil.

Última nota, que este post já vai maior do que eu pensava: não só é possível diferenciar a esquerda da direita no Brasil, como essa é uma tarefa que se faz cada vez mais urgente. E essa diferença, nas palavras de um brilhante crítico materialista,
"is, first and foremost, a product of temporality: of the weight and memories of the past, the open-ended conflicts of the present, the projects and hopes of the future."
(Franco Moretti, "The moment of truth",
in New Left Review. London, n. 159, sep.-oct., 1986, p. 47)

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