sábado, 27 de março de 2010

A verdade muito particular de Reinaldo Azevedo

Tenho pelo menos uns 15 livros empilhados aqui no chão; sobre a mesa, impressos, mais seis livros e três peças de Joaquim Manuel de Macedo; isso sem contar O filho do pescador, de Teixeira e Sousa – todos esperando que eu organize meus pensamentos em algo que faça um mínimo de sentido para ser apresentado à Fapesp. Mais um litro de vodka que se esgota, e o que me move a escrever é Reinado Azevedo. Acho que há algo de errado comigo.

Mas, simplesmente, é preciso purgar um post cujo título é: “MILITANTES DE DILMA FEREM POLICIAIS EM SÃO PAULO”. Meu primeiro sentimento foi de estupefação. O que pensar de um texto no qual se lê:

"Depois que Bebel, presidente da Apeoesp, dividiu, ontem, o palanque com Dilma Rousseff, os membros da tropa de choque da presidente da Apeoesp passaram a ser tratados neste blog como 'militantes de Dilma'. Se vocês clicarem aqui, terão acesso a fotos dos protestos. Policiais feridos são carregados por seus colegas e até, parece, por um manifestante. São os pacifistas de Dilma em ação."

A lógica de acordo com a qual Reinaldo Azevedo trabalha é descarada, imoral e obscena. Primeiro, um silogismo aviltante – se é que podemos chamar isso de silogismo: Bebel é presidente da Apeoesp; a Apeosp é um braço do PT; Dilma Roussef é candidata do PT à presidência da República. Conclusão: a Ministra Chefe da Casa Civil é a responsável pelos conflitos que aconteceram em frente ao Palácio dos Bandeirantes hoje à tarde. É engraçado notar que, durante o caos que reinou em São Paulo no começo deste ano, este mesmo colunista da Veja responsabilizou as chuvas. E nada para os governos de Serra e Kassab: um é mera vítima da politização criminosa do PT, sob os auspícios ditatoriais de Dilma; outro, de uma fatalidade climática.

Sinceramente, isso é o cotidiano de Reinaldo Azevedo, algo que, pela incessante repetição, já vai perdendo a graça surreal que tinha. O pior é uma inversão das mais aterradoras: o aparato policial brasileiro, conhecido pela sua truculência e pelo seu descaso com os direitos humanos, é vitimizado, enquanto os grevistas, amparados por um direito constitucional de mobilização, são os vilões da história, a SS petista.

Esse tipo de leitura, afora a sua falsidade, procede num processo de mascaramento das nossas barbáries. No site Ternuma, lê-se o seguinte memorial à “Revolução de 1964”:

"O clamor das manifestações públicas e sociais do início de 1964 desaguou no Movimento Democrático de 31 de março, marco imorredouro da evolução política nacional, quando as forças democráticas, lideradas pelas Forças Armadas e em defesa da nossa Soberania, impediram que o comunismo internacional tomasse o poder. Eterna homenagem aos que lutaram em prol da Democracia e da Liberdade."

O cinismo é similar: do mesmo modo que uma ditadura militar se torna, de acordo com a vontade muito particular da direita brasileira, um movimento “em prol da Democracia e da Liberdade”, uma greve de professores vira uma manifestação fascista – em que apostilas se tornam os livros queimados em praça pública na Alemanha nazista –, e a repressão policial – munida de helicópteros, balas de borracha e sprays de pimenta –, o elo fraco e abusado do conflito.

O embaralhamento desta distinção é um excelente exemplo de como funciona a lógica que rege o comportamento conservador de nossas elites: decide-se, arbitrariamente, que ditadura é democracia, que Dilma é a responsável pelos conflitos, que os policiais são vítimas, e os professores, criminosos fascistas. E ponto. A reflexão, a história, os fatos – para quem gosta deles – que se curvem ante à vontade de Reinaldo Azevedo.

Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, é que está correto:

"A gente está entrando numa dimensão onde a memória nacional, a política atual e o destino do nosso futuro se entrelaçam. Existe uma frase no livro 1984, de George Orwell, que diz: “Quem controla o passado controla o futuro”. Mexer com esse tipo de coisa é algo que não diz respeito só à maneira que o dever de memória vai ser institucionalizado na vida nacional, mas à maneira com que o nosso futuro vai ser decidido."

E a maneira como lemos os fatos do nosso presente, pelo visto, também.


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